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Porto Calendário

Por Patrícia Brito

O poder da viagem

Sabemos que viajar por lazer é bom e recomendado pela ciência da saúde.  Sabemos ainda mais que, quando unimos a viagem de lazer com objetivos culturais, resulta em evolução da alma, experiência para vida

Além do enriquecimento pessoal e cultural, viajar traz benefícios tangíveis para a saúde. Estudos têm demonstrado que viajar pode reduzir o estresse, melhorar a saúde mental e até mesmo aumentar a longevidade. O simples ato de nos desligarmos da rotina diária e de nos permitirmos explorar novos ambientes pode promover uma renovação física e mental. Além disto, a exposição ao ar livre, seja caminhando por uma floresta ou simplesmente passeando por uma nova cidade, melhora a saúde cardiovascular e promove sensação de bem-estar. (Juciara Vieira Cardoso)


Em minhas viagens de lazer e familiar, sempre proponho um desafio ou objetivo com o local visitado. Assim, a aventura passa a ter mais sabor, ficando mais interessante não só para mim, como também para quem está envolvido.


Dito tudo isso, não poderia ser diferente ao organizar uma viagem de férias, para conhecer o Oeste da Bahia, em especial, Santa Maria da Vitória.  Como o foco aqui é apresentar Porto Calendário,  irei pular algumas páginas do meu diário de viagem, seguirei direto para minha visita à Biblioteca da cidade e, em seguida, à Casa da Cultura.


Conhecer a história,  a cultura, o histórico-social de cada local que visito é minha verdadeira paixão.  Ao entrar na biblioteca, sou apresentada ao trabalho de Osório, então fico totalmente encantada com o corredor que tem a linha do tempo da história da cidade e fico bem arrepiada ao descobrir que aquele prédio, que expõe a cultura local, foi moradia dos prisioneiros da cidade, ou seja, a cadeia pública. Dois mundos contraditórios em um único local.


Quando chego à sala reservada para Osório, minha alma estremece. Como assim, uma cidade escondida possui um escritor premiado com o Jabuti? Enlouqueço e quero o livro de qualquer maneira. Para isso, sou encaminhada à Casa da Cultura e conheço com muita empolgação Joaquim Lisboa Neto, que me apresenta o mais novo paraíso da viagem.


Assim, o solícito Joaquim esclarece e elucida um pouco mais sobre a Casa da Cultura:

A Casa da Cultura Antonio Lisboa de Morais foi fundada em 7 de março de 1982, com status de sociedade civil sem fins lucrativos. Criada para dar personalidade jurídica à Biblioteca Campesina, que surgiu 2 anos antes, exatamente no dia 15 de fevereiro de 1980. Além de abrigar a biblioteca, a CASA ao longo do tempo foi se tornando um verdadeiro centro de documentação e pesquisa, sendo a fonte onde nessas quatro décadas várias gerações de estudantes e professores, além de pesquisadores de universidades vindos de vários estados, beberam a fim de cumprirem com suas tarefas pedagógicas. O nome foi dado em homenagem a ALM, quem foi vítima da ditadura, já que seu filho Clodomir Morais foi preso no 1º de abril de 1964, indo pro exílio no Chile um ano e meio depois de encarcerado.


E sobre Osório e Porto Calendário ele explica:

Minha relação com o romance Porto Calendário, de Osório Alves de Castro, vem desde a primeira metade dos anos 70, época em que tomei conhecimento da existência da obra. Já o li e reli um sem-número de vezes e a cada rerelida redescubro tonalidades em circunstâncias anteriores passadas por mim despercebidas. Pra mim pessoalmente, e deveria ser pra todo santa-mariense que se preze, é motivo de orgulho imenso ser conterrâneo desse romancista que recebeu o prêmio Jabuti em 1962, tendo sido a obra editada em 1961 pela Livraria Francisco Alves, na Coleção “Terra Forte”, criada e dirigida por Paulo Dantas, para quem Osório entregou os originais, estimulado, eu diria até pressionado, pelo grande Guimarães Rosa. Dentre os principais objetivos da Casa da Cultura ALM-Biblioteca Campesina está a disseminação do premiado romance junto à comunidade santa-mariense e isso nossa entidade tem feito incessante, insistente e persistentemente.


Joaquim Lisboa Neto

Nascido aos 28 de abril de 1952 em Santa Maria da Vitória, Bahia. Filho de João de Sousa Lisboa e Terezinha Cordeiro Lisboa.

Atualmente divorciado, foi casado com Evanina Maria, Maria Nice e Angélica Rodrigues. Com a segunda esposa tem o filho Eros Guarany e a filha Anima. E com a terceira mulher foi a vez de Fanny. Na sequência os netos: Gutto, Clara, Lunna e Luiz Miguel.

Jornaleiro dos 8 aos 10 anos em Carinhanha/BA, cursou técnico em contabilidade em Belo Horizonte entre 1970 até 1973; bancário nos anos 70; em 1979, junto com mais três companheiros, fundou o jornal mimeografado O Posseiro, que circulou até 1996.

Fundou nos anos 80 com outros companheiros a Biblioteca Campesina, tornando ao longo dos anos a mais importante do oeste baiano. Março, 7, 1982. Se cria a Casa da Cultura Antônio Lisboa de Morais, fica como o primeiro presidente da entidade. Passando um período fora da região, em Brasília e Recife, retorna a Santa Maria da Vitória no comando da Casa da Cultura, sendo coordenador cultural de 2009-2015. Trata-se de um grande, senão,  o maior incentivador da cultura e história da região de Santa Maria.



E quem foi Osório?

Romancista, alfaiate e militante comunista brasileiro. Nasceu em Santa Maria da Vitória em 17 de abril de 1898, morou em várias cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Bauru, Lins e Marília, faleceu em 09 de dezembro de 1978 em Itapecerica da Serra, sendo conhecido como “O homem que costurava as palavras”.

Em 1962 recebeu o prêmio Jabuti de Literatura pelo romance Porto Calendário, primeira e única obra publicada em vida.

Também ficou conhecido por manter amizade epistolar com o escritor Guimarães Rosa, autor de “Grande Sertão: Veredas”. Guimarães reconheceu e ficou fã do escritor baiano, a quem chamou de “barranqueiro inaudito de Marília e Paulista profundo do São Franciscano”

“Oh, o homem do São Francisco! Pudesse, eu ia lá em Marília, conversar com ele, três noites e três dias, seguidos, sem pausa nem pio, sem fio nem pavio (...) Este homem Osório Alves de Castro eu quero ver, ouvir, abraçar e conhecer, para admirar mais...”.



Porto Calendário

O livro de quarta edição, lançado em 2017, conta com uma apresentação bem acentuada de Aleilton Fonseca e três prefácios: primeiro: O urucuiano Osório Alvez de Castro; o segundo: Porto calendário, um modelo de romance para o Brasil de autoria do Paulo Rangel; o terceiro: Rua 15 de novembro – 100 anos de Osório assinado por Osório Alves de Castro Filho.

Cada texto tem seu mérito ao apresentar para o leitor o que esperar da obra.


O seu romance é uma obra-prima do gênero romanesco, com uma linguagem criativa diferenciada, processo narrativo denso espraiado, diálogos curtos e precisos. Em sua tessitura, é marcante e pungente a evocação cultural do rico imaginário “barranqueiro” do médio São Francisco, região ribeirinha de inestimável pluralidade etnográfica e solo das raízes profundas do nosso ethos sertanejo (Aleilton Fonseca)

 

Assim como o índio e o bandeirante romperam a mordaça da moral jesuíta, para criar uma nação mestiça e semipagã, o romance brasileiro rompeu os moldes artificiais, para espraiar-se no tempo, com seu tumulto e seus espantos. Porto Calendário é o novo marco dessa insubmissão. Na linha subversiva de Alencar e Mário Andrade, ele vem completar a afirmação da seiva brasileira na língua portuguesa. No campo aberto da temática sertaneja, rasga mais largas perspectivas para a compreensão da nossa gente. Estória larga, em que pululam pequenas estórias, formando a trama de assombros, entre misérias e grandezas, do estado de São Francisco com que sonhava Isidoro Afonso de oliveira (J. Herculano Pires)

 

E, com a adoção de três elementos básicos, a linguagem, a apresentação de uma grande sequência de cenas e personagens perfeitamente identificáveis como brasileiros e extraídos da vida cotidiana, e o sofrido relacionamento entre o homem e o meio ambiente, o livro é uma proposta para o modelo de romance brasileiro (Paulo Rangel)

 

O livro narra a batalha de Pedro Voluntário da Pátria, com cenário de Santa Maria da Vitória, lutando por uma vida melhor para a família, em tempos de seca e coronéis fazendo suas próprias leis.

“Está aí na vista e mais: aposto. Desde o Cariri até os cerrados da Bahia, entrando por Minas Gerais, não se vê uma folha verde. Diferentes, são as terras do Corrente e Correntina. Molhadas pelos registros e pelas rodas pachorrentas, despejando dia e noite água no Ribeirão, garantem safras certas e bem vendidas. Conheço: é quando o flagelo se volta por todas as paragens. Rapadura e farinha, ficam por preços de arrancar os olhos da cara e, feliz de Januária, Barreiras e este Corrente com valimento”. (p. 34)

A obra tem uma narrativa com linguagem típica do local e, paralelo à ficção, contextualiza os fatos históricos e sociais da era com diálogos e mudanças de personagens.


Logo no início, presenciamos Benzina, a segunda esposa, anunciando a chegada de mais um filho. Dia seguinte, a construção da Barca que o mestre Cornélia constrói para Fernando Sessenta.

“...Benzinha minha mulher tem um filho meu na barriga... tomamos um rancho e nada mais de uma mulher e uma criança doente. Éramos cinco homens e a Guerra sofre todas as fomes”. (p.38) 

Ainda no início, apresenta Aurélia, a primeira mulher de Pedro, já falecida e que deixou os filhos Salu e Mariona, seguindo do nascimento do filho que somando são 12. Uma introdução mostrando bem o contexto familiar do protagonista.


Mais na frente, narra a chegada do novo delegado à cidade de Santa Maria da Vitória e como este persona irá impactar os moradores.


Tem a Peste Negra, a libertação dos escravos. Entretanto, é após uma virada de ano, uma grande aflição do personagem, com a seca castigando: perda do gado, a farinha, o arroz e o milho valiam mais de recursos para sobrevivência.

No tempo da escravidão os Magalhães e os Ataques mandavam vir moços de Portugal, para servirem de reprodutores na fazendas de criar negros. Cada macho recebia vinte fêmeas e tinha um quinto a escolher na produção.  Faziam filhos nas coitadas e como os escravos mulatos eram mais valorizados, transformavam seu sangue em dinheiro.  Foi por isso que os pretos inventaram a cantiga do Urubu Branco, que diz:
Caracará de tão imundo,
Nem o sujo quer mais ele...” (p.45) 

Com o entra e sai dos personagens, alguns indo embora, outros à mercê da era dos coronéis paralelo à saga do Pedro, conhecemos uma sociedade sofrida, algumas vezes desacreditada, outras vezes com esperanças ao planejar fugas e mudança.


O livro tem uma temática regionalista, cheio de personagens com personalidades fortes, tipos que passam, tipos que ficam, e uma luta interminável entre os coronéis e moradores que não aceitam a vida precária e fogem por meio do rio Corrente, buscando uma melhoria de vida em vários Estados brasileiros.


Por causa da linguagem típica da região, de um passado histórico, o livro pouco conhecido por leitores comuns e contemporâneos é muito estudado por leitores apreciadores de livros bem construídos, acadêmicos e escritores que buscam uma leitura diferenciada.

 

Premiado pelo Jabuti em 1962, somente lendo Porto Calendário para sentir e compreender a luta e a revolta de uma década difícil por meio dos personagens e cenários atípicos da nossa atualidade. Onde o transporte era o barco, a comunicação era o diálogo, a seca uma realidade.



Regionalismo literário

Rosa Lima em seu artigo comenta: Como conviver nesse mundo do atraso, do sofrimento; e ou mudar-se para o eldorado nacional, São Paulo, em busca de melhores dias, de uma vida mais digna?

 

O site Educação/UOL registra que o regionalismo tem uma tradição de quase 150 anos na literatura brasileira. Surgiu em meados do século 19, nas obras de José de Alencar, de Bernardo Guimarães, de Alfredo d’Escragnole Taunay e de Franklin Távora e pode-se dizer que há textos de cunho regionalista em nossa literatura até o final do século 20… Por regionalismo, entende-se a literatura que põe o seu foco em determinada região do Brasil, visando retratá-la, de maneira mais superficial ou mais profunda.


Já Antonio Candido analisa o papel da produção regionalista na história literária. Uma situação que se insere na interpretação de um movimento de contraposição de ideias entre localismo e cosmopolitismo. E Coutinho reforça o pensamento:


Num sentido largo, toda obra de arte é regional quando tem por pano de fundo alguma região particular ou parece germinar intimamente desse fundo. Neste sentido, um romance pode ser localizado numa cidade e tratar de problema universal (Coutinho 1964, p. 202),


Os elementos importantes, presentes na ficção regionalista e colocados em primeiro plano, são as presenças dos costumes locais de determinada região, como os elementos físicos numa exploração que concentra forças na observação desse panorama. Pode-se afirmar que regionalismo é a expressão literária que valoriza a força que há nas peculiaridades locais, nas suas formas particulares de dizer, bem como na exploração descritiva do lugar geográfico.


O estudioso da ficção regionalista e dos manifestos e polêmicas que a cercam também se sente contagiar pela persistência do objeto [...] porque não se deixa enganar pelo aparente simplismo dessa tendência.

 



Ir ou ficar

O artigo da Revista Humanidade conclui que o mundo narrado não necessariamente é um mundo real. A cópia fotográfica é uma visão ingênua sobre a região. Entretanto, embora seja ficcional, o espaço criado literariamente é um portador de símbolos para um mundo histórico-social e uma região geográfica existente.

 

Ainda segundo a revista, a palavra regionalismo pode causar estranheza e preconceito ao se comparar as regiões metropolitanas com as regiões rurais. Entretanto, essa mesma expressão pode ser a valorização de individualidades locais na forma de demonstrar suas peculiaridades em suas formas de demonstrar suas diversas características, como a descrição dos lugares geográficos. Afrânio Coutinho conceitua o termo regionalismo de duas maneiras. A primeira é que toda obra de arte é regional se tem por pano de fundo alguma região ou parece germinar desse fundo. Por outro lado, o autor define que o regionalismo ocorre quando se pode retirar suas substâncias reais das particulares de um local, entendendo a substância como o fundo natural, clima, topografia, flora, fauna.

 

Ler Porto Calendário não foi fácil, mas foi extremamente importante para minha formação autoral e leitora. Por isso, ao invés de ler como um romance simples, que na maioria concluo em uma semana, decidi lê-lo por quatro meses, ritmo lento, lendo e estudando. Março e abril dediquei à primeira parte da obra. Maio e junho dediquei à segunda parte da obra.


A minha gratidão em especial a Santa Maria e ao sr. Joaquim, por apresentar um pouco mais além desta obra que ficou muito especial a leitura de cada página.


As lições são infinitas, a leitura é lenta, entramos em um “Porto” e, ao avançar o “Calendário“, saímos outro leitor. Aprendi de uma maneira particular sobre o mundo dos coronéis, a seca que castiga, a fome, sobre decidir ir ou ficar. Ficando cada vez mais encantada com o poder da Literatura.


☆☆☆


Biógrafa, ensaísta, escritora titular  da cadeira 22 da Academia Teixeirense de Letras – ATL



Referência:

 

 

1 opmerking


Erivan Augusto Santana
Erivan Augusto Santana
23 jul.

Obgdo Patrícia Brito, por nos apresentar mais uma importante obra do regionalismo baiano, que pelo valor, é pouco contemplado pela grande mídia!

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