Por Patrícia Brito
Se as viagens são antigas entre os hábitos humanos, a literatura e a escrita de viagem são tão remotas quanto aqueles. O prazer de se deslocar do seu local fixo para um local desconhecido ou diferente ou tão bem conhecido do viajante, mas com novas experiências a cada visita, sempre fascinou o homem – seja antigo ou pós-moderno.
Goethe, Homero e Júlio Verne são alguns dos autores clássicos que construíram suas narrativas com base em experiências de viagens. No Brasil, entre autores clássicos estão Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Euclides Cunhas.
Mas afinal, o que é literatura de viagem? Como compreender e apreciar este gênero sem cair na literatura informativa de folhetim ou marketing turístico?
[...] a literatura de viagem surge da necessidade de entender o outro e tem o poder de “modificar as concepções de mundo do leitor e do próprio autor. Pois, para interpretar e representar o estrangeiro, o autor principia de seus preconceitos, estereótipos, de sua cultura, modificando-os ou confirmando-os; com o leitor, ocorre o mesmo processo, com o acréscimo da tentativa de viver imaginariamente o que não viveu de modo material[...]”.
Neste mesmo artigo, Natália Becattini ainda completa,
[...] em todas as sociedades nas quais as viagens coincidiram com a escrita, os relatos de viagem estiveram presentes. [...] (Fonte 360 meridianos)
A narrativa da literatura de viagem é interdisciplinar, trazendo informações históricas, antropológicas e até mesmo econômicas. Algumas podem ser bastante descritivas, mas os autores que trabalham com a narrativa ficcional propõem mais leveza aos leitores ao apresentarem os costumes, crenças, culturas, características e povos por meio das personagens, do enredo e construção do espaço e tempo.
O livro mais recente da autora Jacqueline Farid – O Árabe Invisível – tem esta linha de narrativa, assim como os seus anteriores. Misturar ficção com uma experiência de viagem é uma marca da autora.
Jacqueline Farid é escritora e jornalista. Nasceu em Itabirito-MG e vive no Rio de Janeiro. Publicou os romances – No Reino das Girafas (Jaguatirica, 2017) e – Prana (Páginas, 2020). O Árabe Invisível foi escrito a partir de viagem ao Líbano, Istambul e Jordânia realizada em 2019.
Sobre o livro
“Todo o medo que sente do Oriente Médio – da língua ininteligível, dos costumes desconhecidos, das religiões que determinam os destinos, das guerras que parecem cessar apenas enquanto esperam a chance de retornarem mais resolutas – terá que se transformar em coragem” (p. 8)
O livro começa com um suspense ou, para os entendidos, com uma narrativa um pouco sobrenatural. Líbano, mais exatamente Vale do Kadisha, Bsharri, uma maçã voadora com um metal na frente assusta o zelador que aprecia com tranquilidade a natureza em Bsharri.
É assim que Youssef chega, ou melhor, retorna à terra. Sua missão? Socorrer a neta Soraia.
“Então, enfim, o árabe invisível e a neta se reencontraram, depois de décadas, sem formalidades, sem emoções, dois companheiros de aventura atados por um amor que os unira muito antes de que nascessem...” (p. 13)
Soraia é apresentada logo em seguida por ela mesma. Uma narrativa em primeira pessoa que prende o leitor por um desabafo muito estranho. Não demora muito, lendo mais algumas páginas, Soraia revela um pouco sua angústia da aventura e da decisão de transformar sua dor em uma viagem.
A autora trabalha com duas vozes de narrativa, a de Youssef é sempre narrada em terceira pessoa, “queria colocar dois pontos de vista diferentes. Que olhassem para a mesma coisa com observações, com reflexões diferentes sobre elas”, revelou a autora em uma entrevista.
Nessa mesma entrevista dada para o lançamento do livro, a autora explicou seu amor por viajar e suas técnicas para transformar algumas viagens em narrativa ficcional. A qual junta a realidade, que seus deslocamentos propõem, em ficção por meio da criação de seus personagens.
Eu escrevo sobre as viagens, isso é muito bom, juntar as duas cosias, [...] ela continua [...] Gosto muito de viajar, é uma necessidade minha. E gosto de viajar sozinha. Acho que, para viajar como escritora, estar sozinha faz muita diferença. (Fonte: O tempo).
A linha que separa a realidade da ficção é tênue, de maneira que prefere deixar para os leitores identificarem, de forma a trabalhar a imaginação de cada um.
Voltando ao contexto da obra, Soraia está em uma viagem de missão. A sua mãe é a responsável por essa jornada e escolha. Enquanto este compromisso não chega, ela resolve conhecer a cultura de cada destino que visita. Seu avô, mesmo do além, o árabe invisível acompanha-a, também em missão, na responsabilidade de a proteger de um certo perigo não revelado.
“A fragilidade da minha mãe me fragiliza [..] transformei minha impotência em passagem aérea e vim ao Líbano para tentar aproximar dela através das nossas origens” (p.65)
A cada novo local mencionado, Soraia ou Youssef apresenta-o por meio de seus pensamentos e reflexões. O livro não tem diálogo. Entretanto, tem muita voz interior silenciada – mas tagarelante.
A busca de Soraia por suas origens em respeito à mãe me fez lembrar de Charles Darwin, mesmo por um contexto diferente, já que em 1831, aos 22 anos, durante cinco anos, ele se aventurou a observar, pesquisar e refletir sobre a diversidade da vida. Nas 20 paradas do navio HMS Beagle, ele realizou experimentos, coletou fósseis, espécimes vivos de animais e vegetais, fez centenas de registros por meio de desenhos e anotações e transformou toda sua pesquisa em um livro, talvez um dos mais conhecidos mundialmente – Sobre a Origem das Espécies por Meio da Seleção Natural ou a Preservação das Raças Favorecidas na Luta pela Vida.
O que me fez lembrar deste estudioso é que, por meio da ciência ou família, estamos sempre buscando ou tentando uma curiosidade ou cuidado de conhecer nossas origens, nossos antepassados. Alguns casos são de saúde, como o da personagem Soraia, outros apenas para preservar a história familiar, e outros aproveitam o amor e a ciência e vão mais longe, fazendo uma pesquisa científica, registrando, como Darwin. Existem ainda aqueles que transformam uma experiência de viagem em uma ficção divertida e emblemática, como Farid.
Conhecer a história de nossos antepassados nos ajuda a compreender os desafios, despertando mais amor e compaixão com nossos familiares e reconhecendo as falhas e erros, sem julgamento.
O primo Elias, guia turístico, aparece e com sua chegada novas revelações familiares surgem.
Soraia segue sua busca, com suas reflexões explorando seu destino de viagem e, aos poucos, o leitor conhece mais a fundo suas origens e suas dores. Soraia narra com precisão cada local visitado, como Byblos,
[...] é uma cidade mínima, mas abriga milhares de anos de história. Adormecida sobre o mar, parece uma pérola cultivada pelos fenícios. Na primavera, pencas de flores rosas se exibem dependuradas sobre uma rua. O vento as derruba das árvores e transforma o chão em um espelho a refleti-las. Não conformada em colorir o espaço à frente dos nossos olhos, também se jogam aos nossos pés, espalhadas como um tapete vivo, móvel [...] O mar determinou o destino dessa cidade, o movimento que é o desígnio dos fenícios e de todos os libaneses (p.72 e 73)
Em se tratando do estilo de narrativa, o leitor não encontrará um ponto de virada ou como na narrativa de fantasia, na qual o bem vence o mal, ou uma personagem que cumpre seu papel heroico. Entretanto, na reta final, com alguns acontecimentos e segredos já sendo revelados, o leitor consegue encontrar boas surpresas e novos pensamentos que estimulam a querer ler com urgência ou não querer que essa aventura de Soraia acabe.
[...] O machismo assassinou sua justiça, como uma arma[...] Depois, do nada, aquela cena que prefere esquecer no chão de casa. Em seguida, o distanciamento do amante de sangue e a aproximação, ao ponto de aceitar um pedido de casamento, do farsante [...] para tornar tudo ainda mais confuso, o risco que ocorre ao deixar a santa no mesmo lugar do qual a resgatara, sabendo que tem por perto um noivo enxerido que fareja o outro como um cão faminto persegue um naco de carne [...]” (p.143)
Lugares E Personagens
“[...] imagino que um viajante desinformado que entrasse aqui agora, nesse silêncio, jamais acreditaria nas mortes sangrentas, nos desmandos políticos, nos conflitos religiosos e na diáspora muitas vezes involuntária dos que partiram e ainda partem [...] As árvores parecem mais evoluídas do que os homens provocam as guerras e desintegram o passado, bombardeiam o presente e aleijam o futuro [...]” (p. 146)
Percebe-se que literatura de viagem é muito mais que memorizar e eternizar uma experiência, é uma forma do autor dividir com seus leitores a experiência que até então era bem individual, seu olhar diante de uma paisagem, do espaço geográfico, um fato histórico,
Normalmente, minha companhia nas viagens que faço são os caderninhos que levo e que me ajudam muito na escrita. E, claro, os lugares que eu considero que também são personagens, por mais que não sejam ficcionalizados. E eles não são de fato, mas só de estarem ali, colocados na obra a partir do meu ponto de vista, da forma como os vi – veja, eu não coloco serviço, 'vá em tal lugar', 'faça tal coisa' – é uma impressão pessoal, uma experiência ou que tive ou que dou aos personagens. Então, já os coloca como personagens. É como se de alguma forma eu moldasse esses lugares para a minha percepção e para a minha literatura.
Com seus caderninhos e suas anotações, a autora consegue dialogar com o leitor sobre a cultura diferente, e muito diferente para o Brasil, sobre o Líbano, Istambul e Jordânia; as contemplações das personagens nos propõem também meditar o impacto das culturas, os costumes, alguns extremos, porém com muito respeito e carinho. E o melhor disso tudo: com doses bem construídas de humor, com as quais assuntos sérios ficam divertidos para serem ponderados.
Segundo Almeida, no artigo ANPEGE – A literatura de viagem oferece, muitas vezes, uma leitura rica e importante para o conhecimento geográfico, pois muitos escritores, ao construírem seus mundos fictícios, mostraram os reflexos do envolvimento das sociedades com seus espaços, lugares e paisagens com extraordinária sensibilidade. Além disso, eles enriquecem novos campos para os leitores, pois exercitam as realidades existentes nas fronteiras da imaginação.
Com uma obra repleta de boas referências literárias e culturais, locais e clássicas, Jacqueline Farid consegue atingir seu objetivo por meio das personagens, com uma narrativa forte, com dois olhares de mundo. Já o leitor encontra diversão com as caminhadas de Soraia e Youssef com final surpreendente e conhece a economia, a cultura e uma geografia peculiar. O Árabe Invisível é escrito especialmente para aqueles curiosos que amam conhecer culturas distantes do Brasil, amam História, apreciam livros ficcionais e divertidos.
Referências
360 meridianos - https://www.360meridianos.com/especial/literatura-de-viagem
Maria Geralda de Almeida – UFG. Revista da ANPEGE. v. 16. nº. 31, p. 155 - 168, ANO 2020 e-ISSN: 1679-768X https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/anpege. // DOI 10.5418/ra2020.v16i31.11389
Biógrafa, ensaísta, escritora da cadeira 22 da Academia Teixeirense de Letras - ATL
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