A vida de Alleluia teria sido sem rumo e sem negociação caso tivesse se acomodado e aceitado todas as condições impostas para o seu porvir. A ordem do mundo estaria,
então, totalmente decidida para ela, sem chances para quaisquer alterações.
Entretanto, desde nova mostrava que não viera a este mundo apenas para sobreviver.
E mesmo com o rótulo de negra, pobre e mulher impregnado em todo o livro, ela, com a sua aptidão em conduzir as situações em cada fase da vida, opta por modificar seu trajeto e não se amoldar naquela vida precária e nos rótulos impostos pela sociedade.
Durante o desenrolar da leitura, lembrei-me muito de um texto trabalhado aqui no Business, no qual o colunista Jacques Guarino faz uma contextualização sobre “liberdade de expressão”.
A princípio o leitor pode achar a comparação inadequada, mas ao mencionar o pensamento de Frederick Douglass “o conhecimento era o caminho direto da escravidão para a liberdade”, fica claro o porquê de ter sido tão importante para Alleluia acreditar nela e em seu potencial.
E à medida que a narrativa nos aproxima das batalhas vividas, tanto no que diz respeito aos estudos quanto aos percalços no caminho, fica impossível não se lembrar de uma outra ilustre biografia: Eu sou Malala – na qual a personagem principal conta sua luta com a literatura em um país onde mulher não “precisava” de conhecimento. A diferença entre as histórias fica apenas na peculiaridade da família, pois enquanto Malala vive o carinho e apoio dos pais, Alleluia vive as condições opostas disso.
Medicina era impensável, o inaudito, o fim do fim. A rigor, para os parentes, eu jamais teria qualquer chance, já que era preta, pobre e mulher.
Nesse trecho, fica claro que para a família de Alleluia, trabalhar como empregada doméstica seria suficiente, pois nada além disso era necessário para que ela sobrevivesse em nosso país, ou pelo menos no bairro Liberdade em Salvador, onde morava.
Existe também, quanto aos fatos históricos, uma diferença acentuada entre as obras, mas o que nos faz querer memorar nestes livros é que ambas as mulheres, com suas armas particulares, lutaram, acreditaram e recolheram todas as pedras do caminho e, sem medo, – ou pelo menos não se deixando dominar por ele – encararam os desafios e traçaram seu próprio destino, utilizando apenas do que dispunham no momento, subindo, mesmo que devagar, cada degrau construído.
Isso poderia ser considerado pouco? Talvez! Mas o que importava mesmo, tanto para Malala como para Alleluia é que não iriam simplesmente cumprir o rito destinado a elas, não seriam jamais estatísticas pré fabricadas ou aquelas sobre quem diriam não ter lutado ou acreditado em seus sonhos.
Mas para que isso fique bem claro, faz-se necessário a apresentação da obra.
OBRA
Irene Baptista de Alleluia nasceu em Abril 1944 em Salvador – Bahia. A grande transformação em sua vida começou em 1964 quando se mudou para Recife e concluiu sua graduação em Química pela Universidade Católica. Depois da sua formatura em 1969, não parou mais.
Na infância, sua batalha teve início já nos estudos primários, lembrando que naquela época, a comunicação, a condução e todas as demais coisas eram bem remotas, o que se agravava ainda mais pela condição precária de Alleluia.
E sem o apoio da família – que tem seus mistérios revelados ao longo da trama -, Alelluia chega a encarar sozinha e de madrugada a fila para a seleção de uma escola. Nessa época, omitiu sobre seus pais para garantir aquela tão almejada vaga. E foi assim, ainda em Salvador, sem nenhuma expectativa de melhoria de vida e sem saber que já estava alterando seu destino, Alleluia começava a avançar na escadaria da vida.
São Paulo, Rio de Janeiro e Alemanha foram os locais onde mais amadureceu e de onde deu passos cada vez maiores em suas especializações. E além das conquistas de entrar em Universidades Federais, passou ainda pela FTI (Fundação de Tecnologia Industrial) e CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear).
Alleluia – mulher, negra e pobre – que viveu em casa sem portas e janelas, com um histórico familiar que não ajudava nem para conquistar seus sonhos mais bobos, conseguiu engendrar tamanho currículo! Essa é a grande riqueza da obra: saber que a grandiosidade não está intrínseca somente nos resultados – embora importantes -, mas em como ela conseguiu alçar seu voo e superar todas as dificuldades impostas e que não foram suficientes para detê-la, pelo contrário, deram motivo para vencer.
Lembram da frase “O conhecimento era o caminho direto da escravidão para a liberdade.”? Não disse que faria sentido?
“Alleluia” é texto bem narrado, com um português alinhado e linear. Obra que consegue nos transportar para cada cena e fazer com que visualizemos todas, como se estivéssemos lá.
Logo no prefácio, ela explica:
Não tenho uma vida exemplar, ou extraordinária, nem me tornei milionária ou famosa sob qualquer ponto de vista – o que também nunca foi meu objetivo –, mas diante das minhas provações e difíceis circunstâncias da vida, acredito, sim, ter vencido barreiras importantes, por muitos consideradas intransponíveis ou incontornáveis. E por esse único motivo – provar que é possível dar a volta no destino. (p.3)
E são mesmo muitas batalhas. Tantas, que mesmo para o leitor mais otimista, fica difícil não divagar por pensamentos de que “ela não vai conseguir”, “é impossível”. A começar pelo fato de que além de não ter conhecido a mãe, teve que ir morar com uma família de comportamento bizarro, que a espancava tanto que fazia doer até as almas das pessoas mais secas e sombrias.
A mentalidade da época ditava que se uma criança apanhava, certamente merecia, não importava razões e explicações. (p.15)
No início é até difícil manter uma leitura dinâmica, pois para cada página são várias lágrimas, precisando, às vezes, de paradas mais longas para um respirar mais profundo. Torna-se quase que surreal tanto sofrimento. Mas em seguida a lembrança de que se trata de uma biografia, faz-nos engolir seco e pensar: “puxa vida, não tenho para onde correr, é a realidade!”
As folhas da aroeira foram fervidas, e depois de me banhar na água fervente, ela mesmo aplicou aquelas folhas sobre os ferimentos – em parte causada pelo cachorro, em parte causada por ela própria […] não sei o que foi pior: a surra ou esse “tratamento”. (p.14)
Essa foi a cena de um espancamento oferecido pela tia-mãe, tão duro que faltou coragem para relatá-lo por completo. Mas… vida que segue! E aos poucos Alleluia começa a deixar claro o porquê de tanta violência, mesmo ficando alguns fatos ainda sem explicação.
OS ESTUDOS
E é devido a todas essas dificuldades e sem ter ideia do que o futuro reservava, que ela começa a acreditar que a única coisa que a poderia salvar dessa vida medíocre e dessa família que até hoje permite tantas interrogações em sua mente, é o estudo. Começa assim, sua batalha pelo conhecimento, sua jornada acadêmica.
Também é importante ressaltar o talento de Alleluia em destacar os acontecimentos históricos vividos no Brasil, os quais fizeram parte de sua vida. O regime militar, por exemplo, e como ela vivenciou isso, são trechos curtos, mas que fazem toda diferença no processo da leitura.
Alguns canos de metralhadoras fuzis apontavam para mim enquanto homens que eu nunca vira gritavam.(p.67)
Enquanto isso, a vida seguia seu percurso e ela continuava mudando sua trajetória sem perceber.
Quando comecei minha graduação em Química em Recife, é certo que não havia previamente traçado um plano de continuidade dos estudos que me levasse ao mestrado. Naquela época, os cursos de pós-graduação no Brasil eram poucos, e os estudantes que se aventuraram avançar além da etapa de formação tinham, grande parte das vezes, de ir para o exterior… (p.61)
Agora surge uma nova oportunidade: Alemanha. Em maio de 1974, observando o mural do departamento, encontrou o professor Miekeley (um alemão, o qual a ligou com o país) que na época afixava um cartaz com a divulgação de um programa internacional de 15 meses em Engenharia Química e Físico-Química, patrocinado pelo Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD – alemão), organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) e pela universidade de Karlsruche.
E é, enfim, nesse trecho que nos deparamos com um relato cômico. Depois de tantos relatos de dor no decorrer da narrativa e após tantas lutas com os estudos e uma rotina caótica, ela nos presenteia revelando sua confusa chegada no aeroporto internacional da Alemanha.
Imagine você chegar do outro lado do continente sem conhecer ninguém, sem conhecer o idioma e sem nenhuma companhia? Alleluia fez exatamente isso! Foi para a Alemanha sem conhecer nada e, além de tudo, com uma certa repulsa pela história do país. Naquela época, ainda existiam os 66,5km do muro de Berlim. E em sua mente, a ideia de que seria recepcionada com extremo preconceito era certa! Todavia, a surpresa veio por meio de uma grandiosa receptividade de todos e não só dessa vez, mas em todas as suas passagens pela Europa.
Sua chegada à Alemanha foi em 30 de Abril de 1975, após a sua defesa da tese do mestrado da PUC-RJ. E o que era para ser apenas poucos meses de estudos, torna-se mais uma das diversas mudanças de roteiro que aconteceram em sua vida. Dos 15 previstos meses de estudo, passou para uma oportunidade única de encarar um novo desafio: o doutorado!
A maneira como essa sublime mulher conduz suas escolhas e oportunidades no decorrer de sua caminhada é o que fica de amadurecimento ao conhecermos sua história. A pergunta de “O que é o destino?” é um questionamento que fazemos à medida que avançamos na leitura.
O surreal é que a ideia de um futuro predeterminado e, ao mesmo tempo, inescrutável, tem uma colaboradora inusitada: a ciência. Ela mesma indica que, sim, seu futuro está escrito. Como disse Einstein em pessoa: “A distinção entre passado, presente e futuro é uma ilusão”. E a realidade está na próxima página. Super Interessante – Nicholas Campion – 2009
A realidade de Alleluia é surpreendente a cada nova página. E quando se aproxima do final, ela ainda consegue nos surpreender com mais uma difícil decisão (é claro que não vou contar). A vida frenética diminui e cabe somente a ela aproveitar ou não mais esse novo desafio e aprender a viver sob um novo olhar, uma nova escolha.
ALLELUIA
Ao término da obra percebo o porquê de os estudiosos de teoria literária ou crítica falarem que a literatura é importante para conhecimento, interpretação e socialização, pois a tríplice de quando se lê uma biografia é esta: história – histórica – realidade.
A história do ser humano se contextualiza com a história de uma nação e mostra ao leitor a verdade de uma realidade vivenciada. Deixando para nós a certeza de que “contos de fada” não são tão fáceis de encontrar – talvez nem existam.
Enfim, a biografia é bem narrada, com assuntos bem amarrados e mesmo aquele que não é conhecedor de química, consegue ficar encantado com a profissão. A sutileza em narrar os percalços da vida particular e a graciosidade e o respeito em expor assuntos sentimentais tornam a leitura fantástica! E essa é a característica de uma boa narrativa, que mesmo sendo linear, narra sem a necessidade de seguir um roteiro reto, uma vez que os assuntos são bem concluídos a cada capítulo. É quase que uma “biografia sem fim”.
A narrativa sem preocupação cronológica, interativa e dividida em fractais ou capítulo nominais. Sem começo, meio e fim, o leitor poderá começar o texto a partir de qualquer página e desfrutar, inclusive, de versões diferentes de um mesmo caso. (Felipe Pena – Teoria da Biografia Sem Fim)
Conhecer a trajetória de vitória de um ser humano é conhecer a história sem filtros, sem a máscara da ilusão e do faz de contas. Faz com que aprendamos a respeitar as origens do nosso próximo.
Alleluia mostrou que é possível, sim, dar a volta por cima e mais, mostrou que mesmo com as adversidades da vida, mesmo com as privações financeiras e mantendo o olhar fito em seu objetivo é possível cerrar os ouvidos para a negatividade e mirar um novo destino traçado por caminhos sábios.
E quando chegar a sua vez, você saberá que caminho é esse, pois a trajetória de sua vida quem faz é VOCÊ!
IRENE
Baptista de Alleluia nasceu em abril de 1944, em Salvador – Bahia. O ano de 1964, ela foi para Recife e lá graduou-se em Química, pela Universidade Católica de Pernanbuco, encerrando – em 1969. Alcançou o título de Doutora em Ciências Naturais (1979) na Alemanha, pela Universidade Karlsruche. Hoje, ela é Irene de Alleluia Meyer e vive entre o Brasil e a Alemanha.
Por Patricia Brito
Biógrafa e escritora ficcional da Academia Teixeirense de Letras.
Estudiosa da literatura e apaixonada por escrever ensaios e artigos literário.
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